quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Diário de Lucy

Quarta-feira, 11 de junho de 1986.


Alguém largou as meias no corredor do crepúsculo, estavam sujas e condiziam com um branco sujo como o branco daquelas paredes. No final do corredor eu poderia ver uma mulher vestida de branco, como uma enfermeira, os cabelos enrolados e bagunçados por debaixo da touca davam-lhe um aspecto de louca. Não fosse eu também louca, eu estaria com medo agora. E o psiquiatra me dissera que eu só estava alucinando.
Nove e vinte da manhã, as sombras projetam quadros estranhos na parede do quarto, eu me lembraria de Justin, não fosse a minha indisposição momentânea, nem todos os homens sábios que eu conheci teriam conceitos tão elevados e lúdicos como ele tem. Tão audacioso e preciso, tão sarcástico e alucinado, Justin seria o começo daquilo que os médicos hoje entendem de minha insanidade. Traumaticamente nós desenhamos quadros no inconsciente, que de semente virou todo um comportamento, Justin parece ter ficado petrificado ao ouvir o alarme soar. Dado ao nosso desentendimento conceitual, não fosse uma enorme necessidade de minha parte de descrever tudo como metáfora, talvez nós estivéssemos em algum canto místico do mundo.
Não sei dizer por onde aquele vagabundo tem se metido desde que me internaram nesse hospital, às vezes compartilho sonhos com ele e ele me diz que tudo está bem. O psiquiatra entende toda a minha realidade como esquizofrenia e eles tentam me forçar ingerir todos aqueles comprimidos em prol de que eu vegete. Às vezes quando absurdamente necessito dormir eu tomo um ou dois calmantes, mas em geral evito entorpecer minha mente com tais comprimidos, eles evitam que eu viaje por entre mundos e que explore todas as inimagináveis realidades disponíveis.
“Lucy, você está tão bonita” – dizia minha mãe na ultima visita, enquanto acariciava meu cabelo me olhando com pesar como se eu fosse uma retardada. Antes me importava com os pensamentos que os outros faziam ao meu respeito, porém hoje me sinto completamente confortável nesse hospício. Não que não deseje um dia sair daqui, mas realmente estava precisando tirar umas férias do mundo. Sofri por algum tempo vendo a sociedade insana julgando-se sã, engessados em conceitos pré-formados, sem sequer questionarem todo o sofrimento que vem se causando. Isso sim, me fez lembrar John e sua raiva constante.
Naquele dia seus olhos denunciaram o vulcão que estava entrando em erupção dentro dele, cego como a maioria é, ele projetou sua raiva em mim, acreditava-se certo e com razão em me odiar e querer me dar uma boa surra. Mantive-me dentro de meu próprio eixo, porque aconteça o que acontecer, nunca podemos nos identificar com a neurose do outro. John não pôde entender quando disse em alto e bom som, que na verdade ele pensava estar com raiva de mim, quando estava com raiva dos conceitos e crenças sobre si mesmo, que o prendiam não deixando expressar tudo o que sentia porque julgava torná-lo vulnerável. Se havia algo que John mais temia, certamente era parecer fraco ou sentimental. E ele não podia ver o quanto negar-se sentir e expressar isso o deixava cada vez mais vulnerável. Ele ainda teve mais força para berrar por horas. Mas, quando se deu conta de tudo o que fazia contra ele mesmo, era tarde demais e ele já tinha pulado da janela do oitavo andar.
Acho que me sinto saudosa hoje e não fosse pelo frio que faz lá fora, eu caminharia pelo jardim ouvindo Dóris, minha companheira de quarto, cantar. Às vezes penso se esse é o fim de todo artista, lembro-me que ficava preocupada em mexer tanto e implantar tantos sigilos e símbolos em meu inconsciente, fazia manobras estranhas e temia por erros irreparáveis. Mas, que fazia pequena Dóris além de cantar ópera? Não vejo qualquer diferença entre as palavras patologia e preconceito. Eles gritam em sua insanidade:
“Peguem os estranhos, os mais perigosos enfiem nos presídios espalhados pelo país e esses que confundem nossas mentes e se comportam de um jeito estranho trancafiem num “hospital” para que “curem” suas mentes e possam ser felizes (e padronizados) tendo uma vida normal (seja lá o que for isso) como a nossa. Pois nós estamos apavorados com a possibilidade de sermos um indivíduo e temos fobia à mudança. Eles são um perigo, pois podem abrir as nossas mentes para o cósmico. E enquanto isso rezaremos para que Deus nos perdoe de todos os nossos pecados. (Porque afinal nós só estamos com medo). Amém.”
Gostaria de continuar escrevendo no meu diário, mas estou realmente com muita vontade de tomar a minha sopa.

2 comentários:

  1. Porra! Muito legal o texto!!!
    Er...mas...acho que essas meias sujas no inicio...são minhas!!! Devolve!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

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  2. huahuahuhua

    Ah pô! Como é que vc fica largando as meias sujas no hospício da Lucy????? Vou conversar com ela e pedir para que ela te devolva!!!

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